terça-feira, novembro 25, 2008

O Alcoolismo ofende os afectos ao longo das gerações - parte I



O alcoolismo pode igualar-se a um conjunto de doenças (ex. doenças cancerígenas, diabetes) que são herdadas na família. Ao contrário destas doenças que referi, o alcoolismo, infelizmente não é sobejamente conhecido e investigado (prevenção, tratamento e recuperação) em Portugal pelas entidades competentes e profissionais.

Há muitas gerações, que se perdem no tempo, que pertencemos a uma “cultura que bebe”, que reforça e promove o consumo de bebidas alcoólicas, em alguns casos, até o abuso do álcool é considerado normal, corajoso, destemido, engraçado e divertido.

Não é novidade que o álcool é um óptimo “lubrificante” nas relações entre pessoas e também associado a uma “fonte” de lazer e bem-estar. Se no inicio de um acto social, nos sentimos desconfortáveis ou constrangidos, após ingerirmos uns “copos” passados uns minutos já nos sentimos aliviados, desinibidos e “confiantes.”- “Muleta extra” utilizada para “quebrar o gelo. Por isso, muito cedo (em alguns casos durante a adolescência) aprendemos estes comportamentos mas raramente os desaprendemos. Podemos recorrer á “muleta” sempre que quisermos porque sabemos perfeitamente que “Não nos vai deixar mal.”


Reconheço vários aspectos benéficos no consumo de bebidas alcoólicas na nossa sociedade. É obvio que o álcool consumido de forma consciente e saudável não representa perigo. Várias vezes refiro que o álcool não é o problema nº 1, mas as pessoas (aquelas que não estão informadas, aquelas que o consomem abusivamente e aquelas que o vendem abusivamente). Não sou “fundamentalista”, mas um cidadão (e pai) e um profissional atento aos problemas relacionados entre as pessoas (sociedade) e o álcool.

Todavia gostaria de “debruçar” sobre os efeitos do alcoolismo na família, ao longo de gerações, e expor questões que na minha opinião, continuam ignoradas e negligenciadas, o que é grave (CRISE negligenciada). Não é nada que não se saiba, mas raramente se investiga e discute até ao surgimento de notícias trágicas e comoventes – ex. casos extremos violência doméstica associados ao alcoolismo e casos de negligência e/ou abuso (físico, sexual e emocional) de crianças associados ao alcoolismo.



No inicio do século XX o alcoolismo era associado a indivíduos sem carácter, sem força de vontade ou marginais. Obviamente este o estigma influenciou, e ainda influência apesar de cada vez menos, negativamente quer o tratamento dos alcoólicos, quer o apoio às famílias expostas ao trauma, incluindo as crianças. Este fenómeno quase que tem passado despercebido. É uma herança antiga, aceite com resignação e impotência, que é herdada do tempo dos nossos bisavôs e antes deles mesmo.

Mais recentemente, através de estudos, nos EUA já se identificou um tipo de vulnerabilidade biológica (herança genética e hereditária) - predisposição familiar para o aparecimento sucessivo do alcoolismo ao longo de gerações, quer seja nos indivíduos que apresentam comportamentos de abuso ou alcoolismo, como também surge um padrão específico nos seus familiares, que não apresentam sinais de alcoolismo, mas que desenvolvem comportamentos disfuncionais repetitivos e destrutivos ao longo da sua vida. Na maioria destas famílias, são os indivíduos do sexo feminino (mães ou esposas), incluindo obviamente as crianças, que são afectadas por estas situações traumáticas (ex. stress pós traumatico). Nas crianças, apesar dos factores associados ao “mau exemplo parental” e à imitação é de salientar a dimensão do impacto e do trauma causado pela exposição prolongada a uma família disfuncional (ex. hipervigilancia, isolamento, depressão, pensamentos obsessivos sobre a família – reexperimenta a situação traumática). O trauma poderá perpetuar-se incólume e afectar o desenvolvimento e a aprendizagem social destas crianças, um dia elas serão adultos, com “cicatrizes”. Conheço casos de casais, ambos cresceram, enquanto crianças, em ambientes disfuncionais associados ao alcoolismo, mais tarde na idade adulta procuram relacionar com os “seus semelhantes”. Gostaria de salientar que cada caso é um caso com as suas especificidades inerentes a cada indivíduo.

Os efeitos do alcoolismo na família e na sociedade podem ser o equivalente a um “incêndio”. Um “incêndio” que permanece activo durante varias gerações. Todos os membros destas famílias, sem excepção, sofrem “queimaduras” e transportam as suas “cicatrizes”. Historias intermináveis de pessoas, incluindo crianças, que procuram adaptar-se (homeostase) ao trauma prolongado ao longo dos anos e viver uma vida “normal”.

Quase todos nós conhecemos alguém que apresenta comportamentos problemáticos relacionados com o abuso ou dependência de álcool (alcoolismo). Contudo, raramente sabemos, seja por ignorância e/ou falta de informação, quais as consequências na família, incluindo as crianças.

Historicamente, a família ainda é referenciada, erradamente, como a causa de alguns problemas associados com o abuso ou alcoolismo ou um obstáculo para a solução. Muitas esposas e mães foram e/ou ainda são as “culpadas” pelo alcoolismo dos seus maridos e filhos. Afirmava-se que o domínio maternal seria um factor que contribuiria para o problema do alcoolismo. Hoje sabemos que é errado. Por vezes, ainda escuto afirmações “Aquele tipo é alcoólico por causa da mulher. Bolas, se fosse comigo também eu bebia daquela maneira para não suportar o inferno em casa” ou “ O Jorge bebe muito porque a mãe é super controladora.”

O sistema familiar (relações entre os seus membros) é afectado negativamente e todos procuram adaptar-se às consequências associadas ao alcoolismo. Alguns ex. - papéis na família (hierarquia familiar); regras de funcionamento dentro do sistema e rituais (aniversários, eventos sociais). Imiscuindo-se nos subsistemas (papeis), ex. – questões relacionadas com a intimidade entre os adultos na família (pai/mãe); a relação entre o pai/mãe e as crianças e finalmente o relacionamento entre irmãos. Todos são “apanhados na rede.”

Perante uma exposição prolongada ao trauma estas famílias adoptam “a regra do silêncio” – não se fala, não se confia e não se sente. A família adapta-se conforme as alterações drásticas do humor de cada membro. A este “síndrome” apelido de repetição das oscilações emocionais intensas e/ou reprimir (abafar, conter, ocultar) e a dissocialidade (resposta característica ao trauma). São os dois lados da mesma é o mecanismo que permite a adaptação ao trauma (efeito amortecedor).
(continua...)

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